Mises - um profeta sem honra em sua própria terra
Os preços estavam subindo furiosamente na maioria dos países da Europa pós-Primeira Guerra Mundial. Alemanha e Áustria, em especial, já sofriam com a hiperinflação. Na Áustria, a economia já estava estagnada. Várias indústrias estavam paradas por todo o país, ao passo que outras operavam apenas em regime de meio expediente.
Quando os homens se aproximaram do centro da cidade, a calada da noite foi quebrada "pelo ronco contínuo, pesado e monótono das impressoras do Banco Austro-Húngaro". O anfitrião vienense, Mises, explicou aos visitantes que aquelas impressoras "estavam operando incessantemente dia e noite, produzindo novas cédulas". Por todo o país, as impressoras que fabricavam cédulas de dinheiro eram as únicas máquinas que operavam em velocidade máxima. "Apenas torçamos", disse Mises aos seus convidados, "que as indústrias alemãs e austríacas possam, uma vez mais, recuperar o volume de operação que tinham antes da guerra, e que todas as indústrias relacionadas à guerra e à inflação, dedicadas especificamente à impressão de dinheiro, sucumbam e deem vez a atividades mais proveitosas e benéficas".
Mises desde muito jovem já se interessava pela questão da inflação. Após receber seu doutorado em 1906, ele escreveu vários estudos substanciais sobre moeda e sistema bancário. Ernst von Plener, um economista proeminente que havia sido Ministro das Finanças da Áustria no período 1867-70, certa vez chamou Mises a seu escritório para discutir uma de suas monografias. "Não sei por que um jovem como você está tão interessado em inflação", disse Plener. "Sim, é fato que a inflação foi um problema sério no passado. Porém," ele prosseguiu, "todos os países civilizados do mundo estão hoje no padrão-ouro. Você realmente consegue imaginar a Inglaterra, a França ou a Alemanha abandonando o padrão-ouro?"
Ludwig, então com apenas 26 anos, de estatura média, ar sério, comportamento formal e aspecto militar, foi respeitoso. Porém, pediu licença para discordar. "Vejo medidas adotadas por esses países", disse Mises, "que não podem ser chamadas de nada menos que 'inflacionistas'. Os livros publicados por seus economistas expressam entusiasmo incontido pela inflação, até mesmo por uma inflação ilimitada. Mais cedo ou mais tarde, as ideias desses economistas inflacionistas irão influenciar a opinião pública. E isso inevitavelmente levará a políticas governamentais inflacionistas." A previsão de Mises foi confirmada durante a Primeira Guerra Mundial, quando a Inglaterra, a França e a Alemanha saíram do padrão-ouro.
Mises serviu na cavalaria austro-húngara no front oriental (russo) durante a Primeira Guerra Mundial. Quando ele retornou a Viena, descobriu que a inflação tinha acentuado a pobreza das pessoas. Homens e mulheres que haviam trabalhado e poupado por décadas descobriram que o valor de suas pensões havia se evaporado; a poupança de toda uma vida repentinamente podia pagar apenas algumas passagens no bonde elétrico. Os comerciantes não conseguiam repor seus estoques com as receitas de suas vendas. Um vendedor de sapatos, por exemplo, com um estoque de 10.000 pares de sapatos em 1914, viu seus ativos definharem continuamente à medida que o custo dos sapatos subia com a inflação; finalmente, suas receitas de um ano inteiro eram capazes de pagar apenas um par de cadarços.
Um exilado austríaco, que foi para os EUA antes de 1900 e se tornou milionário, legou em testamento sua fortuna para criar uma instituição educacional para órfãos na Áustria. Sob as leis austríacas, os dólares tinham de ser aplicados nos títulos do governo austríaco até que os arranjos burocráticos para a instituição estivessem completos. Mas aí veio a Primeira Guerra. Quando esta acabou, a inflação já havia tornado inúteis todos os títulos do governo - e nada restou aos órfãos.
Mises percebeu que a inflação era proveitosa para alguns poucos em detrimento de muitos outros. Aqueles que foram diligentes, laboriosos, conscientes e responsáveis, que haviam trabalhado duro e poupado, eram os "perdedores", pois a inflação erodia toda a sua riqueza. Já aqueles que haviam se endividado para poder viver muito além de suas posses e que gastaram prodigamente eram os "vencedores", pois a inflação permitia que elas pagassem seus credores com um papel-moeda cada vez mais sem valor.
Em 1922, Ignaz Seipel se tornou Chanceler da Áustria. O Dr. Seipel, um padre católico romano, honesto e escrupuloso, porém ingênuo em questões financeiras, não era exatamente o que se convencionou chamar de político típico. Mises, que naquela época era um conselheiro do governo, e Wilhelm Rosenberg, amigo de Mises e advogado especialista em questões financeiras, convenceram Seipel de que, para o bem do povo, a impressão de cédulas monetárias deveria ser interrompida.
Porém, Mises percebeu que Seipel esperava que a interrupção da inflação trouxesse uma imediata prosperidade. E Mises não queria iludir Seipel. "Interromper a inflação irá trazer uma melhora econômica com o tempo", Mises lhe disse. "Porém, não será algo imediato.... O primeiro efeito dessa interrupção será uma 'crise de estabilização', que irá provocar sérias, embora curtas, privações econômicas". Mises prosseguiu com a explicação:
As pessoas passaram a esperar que os preços subam constantemente. Elas, na medida do possível, já se ajustaram à inflação. A interrupção do fluxo de cédulas será um choque. Aquelas que haviam antecipado mais inflação verão seus planos frustrados. Assim, o efeito imediato da interrupção da inflação não será benéfico para o senhor e nem para o seu partido político. Ouso dizer que o senhor terá sérias dificuldades.
Seipel interrompeu. "Mas você diz que isso é necessário - que essa é a coisa moral e ética a se fazer. Sendo assim, então não importa. O partido não deve fazer apenas aquilo que é popular no curto prazo; ele também deve fazer o que é melhor para o país." Graças a Seipel, a inflação foi finalmente interrompida na Áustria no segundo semestre de 1922, um ano antes da catastrófica Socialism, no qual ele explica que, se os comunistas abolissem a propriedade privada, eles seriam incapazes de fazer qualquer cálculo econômico - e consequentemente, seriam incapazes de planejar a produção. Em uma sociedade comunista, disse ele, na qual toda a propriedade é comunalmente gerida, os planejadores dependeriam totalmente de soldados e executores, a quem recorreriam para fazer a população cumprir seus decretos.
Sem propriedade privada, não haveria proprietários particulares negociando bens e serviços, o que significa que não haveria trocas entre reais proprietários. E sem proprietários particulares - cada qual guiado pelo desejo de lucros e o temor de prejuízos -, não haveria preços de mercado para indicar o que as pessoas querem e quanto elas estão dispostas a pagar por esses bens. Sem preços de mercado, não haveria concorrência e nem um sistema de lucros e prejuízos. E sem um sistema de lucros e prejuízos, não teria como haver uma rede de produtores independentes, interrelacionados e voltados para o consumidor. Sem propriedade privada, sem concorrência, sem preços de mercado e sem um sistema de lucros e prejuízos, os planejadores não saberiam o que produzir, quanto produzir e como produzir.
Ou, como resumiu brilhantemente
Quando Socialism apareceu em A verdade é que, por décadas, a URSS se manteve tropegamente. Seus decretos foram cumpridos, como Mises
havia previsto, por meio da coerção de soldados e executores, e o sistema só
conseguiu manter-se com a assistência de maciços subsídios externos,
principalmente dos EUA. Durante 72 anos,
desde a Revolução de Quando, em A
ascensão do nazismo Mises era um judeu numa sociedade que estava se tornando crescentemente
antissemita. Sendo um economista que
entendia os princípios da ação humana, ele já pressagiava, ainda em 1927, o que
estava por vir. Ele já havia percebido
que as políticas intervencionistas que vários governos europeus estavam
seguindo levariam todo o continente e seus habitantes ao desastre. Mises anteviu o fim da liberdade na Europa
Central. Mas o mundo não ouviu seus
alertas. Adolf Hitler havia sido um fracasso em sua Áustria natal. Ele havia lutado com os alemães durante a
Primeira Guerra Mundial e, desde então, havia por lá ficado. Não muito tempo depois da guerra, Hitler
ganhou o controle do Partido dos Trabalhadores alemão e o transformou no
antissemita Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Já nos anos 1930, o movimento hitlerista
estava ganhando numerosos adeptos em toda a Alemanha. Em setembro de 1932, Mises estava em um encontro da Sociedade para Políticas
Sociais (Verein für Sozialpolitik), Os outros que estavam presente acharam isso improvável. "Mas mesmo que isso ocorra", eles
perguntaram, "mesmo que Hitler de fato
venha a assumir o poder, por que nossa Sociedade não se encontraria de
novo?" Hitler, disse Mises, não
toleraria encontros de intelectuais que poderiam um dia se tornar seus
oponentes. Hitler subiu ao poder na Alemanha em março de 1933, seis meses após o
encontro da Sociedade Mises participou durante muitos anos da Câmara de Comércio do governo
austríaco, como conselheiro econômico do parlamento nacional. Ele também foi professor da Universidade de
Viena, trabalhando meio expediente e sem salário, recebendo como pagamento
apenas as gratificações pagas pelos estudantes.
Em 1927 ele criou o Instituto Austríaco para a Pesquisa de Ciclos
Econômicos. Por causa de sua prodigiosa
produção - livros, artigos e palestras - Mises adquiriu na Europa a reputação
de estudioso sério, e ganhou algum reconhecimento internacional. Mises também conduzia um seminário particular em Viena voltado para jovens
PhDs interessados Certo dia, contemplando a vista propiciada pela janela de seu escritório,
Mises pensou alto com um de seus jovens amigos economistas, Fritz Machlup. "Talvez nossa civilização acabe, talvez um
dia haverá grama na Ringstrasse", referindo-se a uma ampla rua de Viena que
havia sido construída no local das fortificações medievais que circundavam as
áreas pobres do centro da cidade.
"Talvez nós tenhamos de deixar a Áustria. Mas para onde iremos? E o que poderemos fazer? Para quais empregos estamos qualificados?" Mises especulou que ele e seus amigos poderiam terminar em algum país da
América Latina, e fez considerações sobre o tipo de emprego que cada um poderia
ter. "Você, Fritz", disse ele, "sendo amistoso
e sociável, pode se tornar um dançarino em alguma boate, propiciando às moças,
jovens e velhas, ótimos momentos." Mises
sugeriu várias funções para seus outros amigos naquela mesma boate, como
cantores, garçons, recepcionistas e atendentes de bar. Quando Mises considerava seus próprios
talentos, ele dizia, "Infelizmente, não sou bom nem como dançarino nem como
cantor, e não creio que seria um bom garçom.
Terei de ser o porteiro, ficando parado na porta de entrada vestindo um
uniforme qualquer". Os amigos vienenses de Mises ouviram com atenção seus alertas e conseguiram
deixar a Áustria antes da Anschluss
(anexação da Áustria à Alemanha) em 1938, quando as forças de Hitler marcharam Um economista em exílio O próprio Mises, tendo previsto a ameaça representada pelo regime
totalitário de Hitler, saiu de Viena em 1934 e assumiu um cargo no Institut
de hautes études internationales (Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais) em Genebra,
Suíça. Ele manteve seu antigo
apartamento em Viena e seus laços profissionais com o Instituto
Austríaco para a Pesquisa de Ciclos Econômicos e com a Câmara de Comércio. Ludwig, uma pessoa muito reservada, raramente falava sobre sua vida
pessoal. Seus amigos e colegas em Viena
consideravam-no um solteirão convicto.
Entretanto, na década de 1930, ele sorrateiramente estava cortejando uma
glamourosa ex-atriz, Grete (ou Margit) Herzfeld Sereny. Viúva, ela lutava sozinha para criar suas duas
crianças. Mises visitou-a em fevereiro
de 1938 para fazer todos os arranjos para o casamento deles. Quando as forças hitleristas invadiram a Áustria em março daquele ano, a
confusão imperou. Margit, em Viena,
conseguiu enviar um telegrama para Ludwig, que naquela data já havia voltado
para Genebra: "Não precisa vir". Ela e
sua filha, Gitta (o filho de Margit já estava fora do país, estudando na
Inglaterra), finalmente conseguiram obter a papelada necessária, bem como as
passagens de trem, deixaram a Áustria e viajaram para a Suíça, onde Margit e
Ludwig discretamente se casaram. O
apartamento de Mises em Viena foi saqueado, com seus livros e outras
propriedades sendo destruídos pelos nazistas austríacos logo após março de
1938, quando Hitler anexou toda a Áustria. O professor e a Sra. Mises passaram seus primeiros anos juntos na Suíça,
desfrutando a vida intelectual de Genebra.
Entretanto, quando os alemães conquistaram a França e adentraram Paris,
ambos decidiram que era hora de deixar a Suíça e ir para os Estados Unidos. Eles fugiram de ônibus, junto com outros
refugiados, através do sul da França.
Foi uma viagem angustiante. O
motorista frequentemente era obrigado a alterar a trajetória para evitar dar de
cara com os soldados alemães. Devolvidos
à pequena cidade francesa de Cerbère, na fronteira com a Espanha, porque seus
vistos estavam vencidos, Mises conseguiu, pegando o trem das quatro da manhã
para Toulouse, adquirir novos vistos. No
dia seguinte, o ônibus cruzou com seus passageiros a fronteira da Espanha. Os refugiados tomaram então um trem para
Barcelona, um avião para Lisboa, e dali finalmente, após uma espera de 13 dias,
um navio para os EUA.
Comentários (18)
Deixe seu comentário